O cantor Kasino se apresenta na terceira edição do Planet Pop Festival, em 2006.
Quando eu tinha por volta de oito anos de idade, minha mãe, cantora profissional, gravou alguns singles para uma gravadora chamada Building Records. Eram versões mais pop, sintéticas e modernas de clássicos como "How Do I Live" (1997), da cantora country LeAnn Rimes, e "(They Long To Be) Close To You", famosa na interpretação do The Carpenters em 1970. Ela gravava sob o nome de Klauss, e as músicas chegaram a ficar grandes no nível de eu escutá-las algumas vezes na rádio ou no clube da cidade em que eu morava. Klauss chegou até a se apresentar no Planet Pop Festival para alguns milhares de pessoas, e o retrato que tiraram dela neste dia está num porta-retrato no rack da nossa sala até hoje.
Alguns anos mais tarde, quando estava no ensino médio, lembro de uns amigos especialistas em memes terem me mostrado um vídeo que permanece um dos maiores marcos para a internet brasileira, mais de dez anos depois do acontecimento original. O grande evento Kasino no Sabadaço, que apesar dos gritos de Gilberto Barros clamando que o cantor era um "DESTAQUE I-N-T-E-R-N-A-C-I-O-N-A-L" se tratava da apresentação de um cantor brasileiro de dance music no programa do Leão, que acabou viralizando pela empolgação desmedida do apresentador em seus gritos insistentes de "AE KASINÃO!" e "AS BALADAS".
Em suas épocas respectivas, os dois acontecimentos funcionaram totalmente desprovidos de contexto na minha cabeça; levaram alguns anos pra que eu começasse a perceber que, na verdade, Klauss e Kasino pertenciam a um mesmo universo pop e cafona dos anos 2000 no Brasil: o chamado eurodance.
Durante os primeiros anos após a virada do século, as pistas paulistanas eram dominadas pela importação de hits europeus (depois, pela fabricação de sucessos nacionais) que misturavam batidas do house e trance em sua potência mais comercial possível e jogavam por cima letras quase sempre mal traduzidas em inglês.
O eurodance, simplesmente dance, como ficou conhecido por aqui, ficou grande o bastante para que seus artistas frequentassem programas de auditório, dominassem as rádios e até ganhassem seu próprio festival, o Planet Pop Festival, cuja primeira edição completa 15 anos em agosto de 2019. O ritmo está ligado, ainda, ao começo da popularização massificada da música eletrônica no Brasil.
As cantoras Klauss e Dalimas cantam na edição de 2005 do Planet Pop Festival
Como é contado por Erika Palomino no livro Babado Forte, a história do underground eletrônico paulistano começa nos anos 70 e 80 com as discotecas e desemboca anos mais tarde em casas como Madame Satã, que dá origem à Nation, ao qual se seguiu o Massivo e assim por diante. Nesses locais, o som que pegava era o techno e house que começavam a ganhar tração nos Estados Unidos. Mas eles ainda eram exceção.
"Ninguém conhecia [esses gêneros], praticamente. Eram só alguns DJs que tinham acesso e que tocavam, e não dava pra tocar em todo lugar", conta Camilo Rocha, jornalista e pesquisador de música eletrônica que discotecou na noite paulistana a partir de 1987. "Aquelas casas grandes da zona leste - Toco, Overnight, Contramão - que foram super importantes nesse cenário de dance music até, eram bem farofa na época, bem mais pop. Tocava muito New Order, Madonna, Pet Shop Boys, Erasure, Information Society".
Ao fim da década de 1980, porém, essas casas já começavam a tocar sons vindos de uma linhagem de discos europeus que pegavam elementos dessa música eletrônica underground, principalmente o house, e incorporam isso num som muito mais comercial. O sucesso do gênero foi crescendo exponencialmente: o famoso termo "poperô", por exemplo, surgiu do clássico "Pump Up the Jam" (1989) do grupo belga Technotronic, enquanto a brasileira Olga Maria de Souza, ou Corona, ficou em top 10 de paradas ao redor do planeta com a canção "The Rhythm of the Night" em 1993.
O sucesso dos sons chegou aos ouvidos das distribuidoras brasileiras, que passou a incorporar esses artistas em seus catálogos. Nilton Ribeiro, que em 1991 montou a gravadora Paradoxx Music junto a Silvio Arnaldo, conta que frequentou por alguns anos o festival francês Midem (Marché International du Disque et de l'Edition Musicale), grande encontro anual de empresas ligadas à música, à procura de licenciamento para as faixas que buscava importar. Ele também destaca a importância que a rádio Jovem Pan e as coletâneas As 7 Melhores da Jovem Pan, lançadas pela Paradoxx, tiveram na disseminação do gênero nesta época.
"A Jovem Pan foi uma das pioneiras a entrar na dance music, tinha espaço pra tocar. Meu sócio era muito ligado à rádio e ao Tutinha, e isso foi estopim para o grande boom da gravadora. [As coletâneas] chegavam a vender milhão de cópias".
A popularização do som rendeu até algumas tentativas de iniciar projetos de dance music no Brasil. O produtor Gui Boratto, junto a seu irmão Jorge e a cantora Patrícia Coelho, criou em 1994 o grupo Sect, que conseguiu relativo sucesso com as faixas "Follow You (Crazy for You)" e "I Can Stop Loving You"; a dupla Ricco Robit, formada por Tibor Yuzo e Ricardo Coppini, lançou com a cantora Anny as faixas "I Don't Let You Go" e "Somebody" em 1997 - ambos são cantados em inglês apontados como dois dos primeiros projetos bem-sucedidos de música eletrônica no Brasil.
O produtores de Ricco Robit na capa da revista Night World, publicação que noticiava a cena
"Eu não conseguia conceber a ideia de que a gente era só consumidor", fala Yuzo, que era DJ desde 1987 e começou a produzir quando comprou uma Roland TR-707. "Eu acreditava no mercado e queria fazer alguma coisa pela cena. Mas na época os meus amigos, os outros DJs, e até os caras de gravadora não acreditavam muito. Ninguém tocava. Faziam de conta que o que eu estava fazendo não existia".
Foi também nessa época que o público frequentador de baladas eletrônicas, com a expansão do dance, começou a mudar. Palomino descreve esse momento como a ascensão do "hétero-techno", que trouxe "um público que inclui patricinhas desgovernadas e bofes lutadores de jiu-jitsu, brigas e confusões e críticas às bichas mais montadas". Do meio para o final da década de 1990, porém, com a ascensão de outros ritmos como o drum'n'bass e o próprio techno, o movimento dance acabou esfriando.
Não levou muito tempo, porém, para que na década seguinte uma nova geração de artistas se influenciasse pelo trance que surgiu das cenas inglesas new-age e criasse um som bem mais melódico, menos caracterizado pelas batidas marcadas do house, que puxaria o eurodance de volta a um lugar de destaque. Na primeira metade dos anos 2000, artistas como as belgas Ian Van Dahl e Lasgo e o italiano Magic Box lançaram hits inquestionáveis e reacenderam a faísca do eurodance no Brasil, desta vez começando um incêndio maior.
Em 1999, Tibor Yuzo, que já trabalhava como produtor musical, foi contratado pela gravadora
Building Records para começar a produzir eurodance com artistas brasileiros - era mais
barato, afinal, fazer música aqui do que importar discos e faixas dos artistas europeus. O que começou com pequenos testes de singles e artistas se tornou um mercado gigante para a gravadora: em algum momento, Yuzo afirma, a dance music era 80% do market share da Building Records. "Chegou ao ponto do dono da gravadora me pedir uma música sexta pra eu entregar na segunda e ir terça pra fábrica. Já não havia mais dúvida, era certeza de que a música iria tocar. Quando ia para a balada, chegava a ouvir três produções minhas tocarem numa mesma noite".
Paulo Pringles, na época coordenador de programação musical na Jovem Pan, curador de diversas coletâneas da rádio e DJ de grandes clubes na Vila Olímpia, confirma a popularidade das produções de eurodance brasileiras e gringas nessa época. "O Alain [Chehaibar, dono da Building Records] quis investir, e muitos artistas ficaram muito fortes. Era difícil você ver um artista de dance, nessa época, que a galera curtia tanto quanto um de pop. E ele conseguiu fazer isso", diz.
Entre esses artistas estava Kasino, cujo single "Can't Get Over" chegou a fazer parte da trilha
sonora da novela da Globo América e esteve entre as mais tocadas no Brasil em 2005 e 2006.
Apesar do sucesso e polêmicas, os artistas envolvidos no projeto parecem querer se distanciar cada vez mais de Kasino - Fher Cassini, vocalista, e Ian Duarte, produtor, rejeitaram o pedido de entrevista sobre o grupo para esta reportagem. Outro projeto de sucesso foi a cantora Dalimas, principalmente com o single "Livin' On a Prayer" (sim, uma versão de Bon Jovi).
Todo esse sucesso culminou na vinda de Lasgo para o Brasil em 2003, com abertura de Dalimas e Adrianne Garcia, outro projeto nacional produzido pela Building. O sucesso do show produzido pela gravadora foi tão amplo que deu a Yuzo a ideia de iniciar o Planet Pop Festival, cuja primeira edição aconteceu em agosto do ano seguinte com dois dias esgotados na Via Funchal e apresentações de, novamente, Lasgo e Dalimas, com a adição de Ian Van Dahl no lineup.
"O objetivo do Planet Pop era fomentar, trazer conteúdo para a comunidade que gostava de dance music. Gerar vídeos, assuntos para as pessoas que frequentavam", conta o produtor. A meta parece ter sido alcançada: de 2004 a 2006, o festival teve quase 20 mil espectadores por edição. O Planet Pop se tornou um marco para tanto os artistas quanto o público, que até hoje sobe vídeos das apresentações no YouTube e faz comentários nostálgicos sobre o festival.
Da esquerda para a direita, Ian Van Dahl, Magic Box, DJ Paulo Pringles, DJ Ross e Erika
"Quando gravei a 'Livin' On a Prayer', não esperava essa grande repercussão. Só me dei conta do tamanho quando cantei na abertura do Planet Pop Festival em 2004. Foi uma grande emoção", diz Dalimas. Paulo Pringles, que se apresentou na edição de 2006 num back to back com o DJ Tom Hopkins, complementa sobre a importância do festival: "Foi um festival pioneiro no Brasil. No mundo da música eletrônica 'fubá', comercial, foi o primeiro. Até hoje não existem muitos grandes festivais de música eletrônica, tirando as raves, no Brasil que não sejam importados".
Como todo gênero que desfruta de uma ascendência meteórica, porém, o dance também sumiu das rádios e baladas tão rápido quanto tinha entrado. Ribeiro e Yuzo apontam motivos parecidos para os fins da Paradoxx e Building Records, notando como a pirataria e a disseminação de música pela internet teve um impacto não nos grandes impérios da indústria musical, mas nas pequenas gravadoras. Com a falência das menores, também, as grandes começaram a comprar seus catálogos de dance music, que nesta época já representava apenas uma pequena porcentagem do mercado de música pop.
Público vibra com apresentação Planet Pop Festival, maior evento do gênero eletrônico à época
Os efeitos e heranças do eurodance, porém, ainda são muito presentes para os que viveram a época. Se em seu berço europeu o som inspirou o que conhecemos hoje por EDM com artistas como David Guetta, Tiësto e Armin van Buuren, além da ascensão de festivais gigantescos como Tomorrowland e Ultra, no Brasil as consequências do sucesso do gênero também afetaram a cena de música eletrônica diretamente. "É a teoria da porta de entrada pra portas mais pesadas, sem dúvidas [risos]. Muitos DJs ou pessoas que passaram a frequentar festas mais underground de techno e house diziam que o primeiro contato com música eletrônica foi ouvindo dance na rádio", fala Camilo Rocha.
Para Yuzo, a música pop sintética brasileira deve muito ao eurodance. "Hoje temos produções nacionais não só cantadas em inglês, mas finalmente chegamos no momento em que temos música eletrônica cantada na nossa língua", diz. "Muitos produtores foram, depois do dance, produzir pop rock, funk. A influência da dance music não ficou restrita à dance music em si, mas foi uma grande incentivadora da produção musical nacional como um todo".
Fonte: Amanda Cavalcanti (Colaboração para o TAB, em São Paulo)
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