terça-feira, 31 de julho de 2018

Como surgiu "Ragatanga", o maior hit de 2000

Alexandre Schiavo (Ex-Vice Presidente da Sony)

Vamos voltar um pouco no tempo: o ano é 2001. O mercado fonográfico passa por sua pior crise. Há pirataria física e uma ameaça real de a Sony fechar no Brasil, por causa dos resultados negativos: cinco anos consecutivos de prejuízo. Isso tudo quando cheguei aqui, transferido de Miami. Então eu tenho uma reunião no SBT, onde me falam do Popstars, um programa que seria lançado no ano seguinte, com o objetivo de montar um grupo pop, que veio a ser o Rouge.
Aquilo me deu um clique muito grande. “É isso. Isso aqui tem umagrande chance de ser histórico”, pensei. Só havia um problema: tudo já 
estava muito encaminhado, praticamente fechado com a gravadora BMG, na época minha concorrente.
Fiz o seguinte: inspirei-me no filme Do que as mulheres gostam, recém-lançado, com o Mel Gibson. O personagem, um publicitário, vai para casa e compra um vinho, passa batom, se depila, vive um monte de experiências para sentir o universo feminino. Fiz a mesma coisa. Quer dizer, parecido. Em vez do universo feminino, entrei no universo
pop. Comprei duas garrafas de vinho, comprei um charuto — que fumei poucas vezes na vida — e fui para casa em busca da epifania. Escrevi um plano de arketing no formato do Advertising nature, um revistão publicitário da época. E Elisabetta, a principal diretora do projeto, embarcaria no avião para a Itália no dia seguinte. Consegui uma
pessoa para entregar esse plano para ela na sala de embarque, de última hora, impresso no formato de revista. Ficou acertada uma reunião para quando ela voltasse.
Disse a ela que tentaria trazer artistas internacionais, Shakira, Ricky Martin... Claro que eu não podia prometer nada, na Sony eles nem sabiam ainda que eu estava fazendo essa negociação. Daí a Elisabetta 
respondeu: “A gente vai fazer com vocês, só que tem uma condição... queremos você como jurado do programa”. Imagina, quase caí de cara! Nunca tinha feito um programa de televisão e, ainda nessa época muito confusa, com crise no mercado, eu tinha de botar a companhia nos eixos de novo. Um programa de televisão me consumiria, como me consumiu, por cinco meses em São Paulo. Era praticamente a semana inteira de gravações. Como eu mantive minha função de vice-presidente de marketing, tinha de trabalhar em dobro. O programa me consumia para caramba, tanto de trabalho físico quanto emocional.
Lembro que as primeiras audiências eram parte de uma convocatória geral, no Sambódromo de São Paulo. Umas 2 a 3 mil candidatas em fileiras de cinco ou seis, e a gente passava, os três jurados, ouvindo. Ali a gente já anotava quem iria para a próxima etapa. Ver aquelas caras todas, aquela esperança, aquela ansiedade, gente passando mal.
Aquelas pessoas todas cantando em coro, em uníssono, uma mesma canção. Enfim, foi muito forte. Havia histórias incríveis. Uma menina tinha chegado lá com o dinheiro só para a passagem de ida de ônibus, vinda de uma comunidade do Rio de Janeiro. Eu estava ali exposto àquelas pessoas, cada uma com um sonho.
As etapas de eliminação do programa também foram uma experiência enriquecedora. Claro que as Spice Girls eram uma referência, mas a gente sabia que tinha de fazer uma coisa com um tempero nacional. Por isso cada integrante do Rouge tem um estilo, um perfil. Havia também a questão da harmonização dessas vozes, não podiam ser vozes exatamente iguais. Primeiro: tinha de ter talento, mandar um à capela e emocionar. Não dava para ser um fake, não podia haver uma que cantasse mais ou menos, essas vozes tinham de dar certo.

Rouge com 15 anos de carreira

Para as músicas, eu tinha um contato da Sony na Escandinávia, que era quem fazia todos os hits dessas bands, “boys” ou “girls”. Comecei a trazer umas músicas para o Rick Bonadio traduzir, outras ele mesmo fazia, a gente também pedia muito que as meninas fizessem alguma coisa autoral. A coisa foi ficando muito bacana, músicas legais, só que… não havia um hit.
Um dia ligou minha ex-chefe, vice-presidente de marketing da regional da Sony em Miami. E falou: “Alex, a gente tem uma situação aqui, uma música de três meninas, o pai delas é assinado com a companhia na Espanha… Ele é o autor. Temos de lançar isso no Brasil, mas tem de usar o original”. Escutei a música: “Acererrê, rá, tanananana...”, um trava-língua incompreensível. Era muito interessante, mas um problema. Pensei: como é que vou fazer?
Não tem onde tocar isso aqui, com três meninas da Espanha que ninguém conhece, está tudo em espanhol, ninguém vai entender. A única coisa que me ocorreu foi tentar vender para alguma marca de ketchup, para fazer uma campanha. Afinal, era “The ketchup song”. Liguei para o Dody Sirena, que é meu amigo, empresário do Roberto Carlos: “Dody, olha essa música, você que tem contato com o mercado publicitário... vê o que consegue fazer”.
Em paralelo, a gente levando o disco das rouges aqui. Todo mundo na Sony achava que eu estava morto. Ninguém acreditava no projeto. E a Globo lançou, ao mesmo tempo, a Operação triunfo, um formato da Espanha, muito parecido com o Popstars. Passavam o programa no domingo, para a gente brigar pela audiência... As pessoas estavam preocupadas comigo. Eu ouvia: Poxa, tinha de estar mais focado na empresa, está gastando muito tempo com isso, fica muito tempo em São Paulo, blá-blá-blá. E o “acererrê” na minha cabeça. Eu chegava à companhia, na famosa reunião de marketing de segunda-feira, perguntava quem tinha visto o programa. Ninguém via o programa. Ninguém. Eu tinha de pedir para alguém gravar o programa, depois fazia todo mundo assistir. Todo mundo me olhava como morto. “O Schiavo se queimou. Deu mal. Acabou.” E o “acererrê” na minha cabeça.
O presidente da empresa na América Latina, um americano, Frank Welzer, me ligou: “Como está indo o projeto?”. Falei: “Frank, para mim, o que vai fazer esse grupo estourar, o grande diferencial, vai ser essa música. Eu preciso dessa música. Sei que existe uma situação política, que tem de lançar como a original, mas eu preciso dessa música”. É muito difícil você detectar um hit assim. Nunca me arrisquei em minha carreira, 25 anos de música, a escutar uma coisa e dizer: “Isto aqui é um hit”. Mas umas músicas são muito claras, não é? Esse foi um dos casos. O trava-língua era um chiclete, não saía da cabeça! Logo depois do Rouge veio o Br’oz: “Sim! Sim! Sim! Esse amor é tão profundo, você é minha prometida, eu vou gritar pra todo mundo!”. Uma versão mais animada que fizemos para “Fruta fresca”, do Carlos Vives. Nossa, foi um hitaço também, mas os meninos não chegaram a vender tanto quanto as rouges. Outro hit claro foi a música do Roberto Carlos: “Esse cara sou eu”. Acompanho o Roberto e trabalho com ele há anos. Quando tocou essa música, eu pensei: “É aquela música que a gente está esperando há anos o Roberto fazer!”.
Bom, de volta a 2001, cheguei com uma gravação de “Ragatanga” ao estúdio do Rick Bonadio, já gravando o final do programa, as meninas com a gente. No meio de uma pausa, falei: “Rick, põe essa música aqui, por favor”. Elas ficaram enlouquecidas. Elas nunca tinham escutado e, já da primeira vez, começaram a cantar e a fazer uma coreografia, de cara. Como num passe de mágica, elas começaram a cantar... E eu só repetindo: “Mas que é isso?! Que é isso?!”.
A Elisabetta, a diretora, entrou e me deu um esporro: “Como é que você para tudo e põe essa música? Que música é essa? Não tem nada
a ver!”. Aí, o Rick: “Schiavo, que p... de música maluca”. Nunca me esqueci disso, o Rick assim para mim: “Alex, mas essa música não tem nada a ver com o grupo, não tem nada a ver com o disco. E também não tem um toque autoral delas. Então, a gente tem de realmente arranjar esse repertório”. Falei: “Que grupo? Que disco? O álbum ainda não foi lançado para o mercado! As pessoas nem sabem quem é o Rouge, ainda! É o que a gente quiser que seja”.
Fizeram com que eu viajasse até a Argentina, até a sede da produtora original do programa, para sentar com o chefe da televisão argentina, que é um gentleman, em um escritório maravilhoso em Puerto Madero. Sentei ali com ele, mostrei a música. Ele ouviu e disse, com voz grave:
“Quem conhece seu mercado é você. Se você acredita, então, ok. Você está convencido?”. Respondi que estava convencido de que essa música era o que podia fazer diferença. Aí eu voltei, música aprovada, as meninas enlouquecidas. Mas os outros não queriam lançar como single. Como primeira música de trabalho lançamos uma balada, que era mais o que o Rick queria: “Não dá para resistir ao seu amor, nanana”. Eu já sabia, intuitivamente, que aquela não ia fazer diferença. Então já mandei gravar os dois videoclipes ao mesmo tempo: o da baladinha e o da “Ragatanga”. Dois dias de gravação, tudo ao mesmo tempo.
Mandei a baladinha para o pessoal de rádio. Aquela execução fria. Realmente, saiu a música, foi superbem, mas durou menos de duas semanas. As meninas estavam em vários programas no SBT, teve um boomzinho. Mas, para quem vendia mais de 100 mil, não era suficiente, e aquilo ia vender de 30 a 40 mil, nem pagava o investimento. A música começou a cair. Eu era dado como morto. Hora da última cartada na manga... vamos com “Ragatanga”.
Para sair com “Ragatanga”, a rádio mais forte era a Jovem Pan, com o temível — todo mundo sabia dentro do mercado — Tutinha, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, dono da rádio. Fui lá ter uma reunião com o homem. Cheguei no Tutinha já com o remix pronto, porque sabia que ele pediria o remix. Ele disse que era uma música difícil, e eu falei: “Está aqui o remix”. Aí ele: “Vou tocar esse negócio uma semana, duas... depois vou tirar esse treco daqui!”. Tocou naquelas duas semanas e se alastrou para o Brasil inteiro. Num negócio que estava vendendo 30 mil, chegava o pessoal de vendas dizendo: “Tenho mais 50 de pedido... 50 mil”. Passavam quatro dias: “Não são mais 50, são 100 mil”. Começou a vender 200 mil por mês, chegou a 1 milhão de cópias. O Rouge salvou a empresa e meu emprego. Literalmente, quando todo mundo já me via como morto…
Dizem que a música certa pode transformar tudo na carreira de um artista, de uma gravadora, e até a vida das pessoas. É o poder de transformação que ela ganha quando se torna hit. E foi um grande hit. No ano passado as rouges voltaram. Seguem lotando shows pelo país.
E pra relembrar esse mega hit, vamos som em questão...


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